Verônicas

Rubro capa, bandarilha
Rosa atirada ao toureiro
Não o rubrancor da vergonha
Mas os rubros de ataduras

Trecho da música Galos de Briga de João Bosco e Aldir Blanc

 

O rei que minutos atras estava descontraído conversando com seus assessores e pessoas da sua comitiva, de repente mudou de semblante, e sério, mostrando preocupação se concentrou na cena que ocorria bem à sua frente.

A dança havia terminado. Era o momento da verdade!

De um lado, o touro, enorme, visto de frente parecia uma imensa bola negra com chifres pontiagudos. Pesava pelo menos 600 quilos e exibia presas nas costas bandarilhas coloridas, uma delas com as cores da cidade onde nasceu o toureiro. O que chamava atenção era o sangue que escorria pelo corpo e a respiração ofegante do touro cansado, fazendo sair das narinas uma espécie de vapor.

À frente do touro, o toureiro, diminuto, magro com o rosto totalmente branco, pálido.  Seu reluzente traje dourado, tão apegado ao corpo, delineava e comprimia seu membro viril mostrando claramente que ele estava tendo uma ereção. Devia ser resultado da dose maciça de adrenalina pulsando no corpo do jovem toureiro. Me ocorreu pensar que em virtude da roupa apertada aquela ereção deveria doer muito. Seria esta a razão da palidez ou seria o pavor que o toureiro estava sentindo naquele momento?

Com movimentos compassados, mas rápidos, lembrando passos de balé, o toureiro que até então usava na mão direita uma espada fina atrelada horizontalmente à muleta, aquela capa vermelha, se acercou do callejón, a área entre os espectadores e o ruedo, a arena, onde os toureiros tomam refúgio. Ali, tomou do assistente uma outra espada maior, transferiu a muleta para a mão esquerda e com a nova espada firmemente agarrada à mão direita, se posicionou e parou olhando fixamente para a cara e os olhos do touro.

Não se ouvia um só ruido dos espectadores!

Depois de alguns segundos parado, o toureiro tomou a iniciativa e farfalhou na face do touro a muleta vermelha pendendo para a esquerda.

O touro baixou a cabeça e partiu para cima do pálido toureiro!

Conheci o Pepe através da Fernanda que era a diretora de finanças da empresa na Espanha em que eu trabalhava fazia um pouco mais de um ano. Pepe e eu éramos colegas de trabalho, tínhamos praticamente a mesma idade e em pouco tempo ficamos amigos.

Ele me surpreendeu várias vezes.

Quando descobri que ele na realidade ele se chamava José, que a meu ver não parecia nada ao apelido, perguntei:

“Afinal o seu nome é Pepe ou José?”

Hoje sei que esta pergunta só poderia ser feita por alguém que, como no meu caso, não tem o espanhol como língua nativa. Todos que falam espanhol sabem que Pepe e José são sinônimos e querem dizer a mesma coisa.

“Me chamo Pepe e José igualmente.” Foi a resposta do meu amigo.

“Como assim, não entendo!”

Eu esperava uma resposta simples, mas não foi o que aconteceu. O Pepe-José então me disse que há duas explicações para esse binômio.

A primeira é que Pepe vem do Italiano, Giuseppe cuja forma curta é Beppe e que se traduz por Pepe. Na Espanha Giuseppe se tornou Josepe que se desmembrou em José e Pepe.

Mas meu amigo preferia a segunda explicação, que segundo ele vinha da bíblia, que descobri mais tarde, há controvérsias, nem todos concordam.

José, o pai de Jesus, em latim era chamado de Pater Putativus, que quer dizer pai adotivo ou melhor ainda, considerado pai sem o ser, isto porque sua esposa a Virgem Maria, como se sabe, ficou grávida do Espírito Santo quando tinha 14 anos de idade. Dizer Peter Putativos para se referir a São José, era um pouco complicado, principalmente para os padres que tinham que fazer isso repetitivamente, e através dos tempos o nome foi abreviado para PP, tomando as letras que iniciam cada palavra, que em espanhol se pronuncia PePe.

Assim como meu amigo, eu também acredito mais na segunda explicação porque há um outro precedente; Paco. Quem se chama Francisco na Espanha pode também ser chamado de Paco. Neste caso a abreviação vem do São Francisco de Assis, que quando fundou a ordem franciscana, era chamado de Pater Comunitatis, pai da comunidade. As duas primeiras letras de cada palavra formam o apelido, Paco.

Em um dos nossos primeiros encontros o Pepe me perguntou se eu era casado se tinha filhos. Eu disse que sim era casado e que tinha um filho de aproximadamente cinco anos. Foi minha vez de perguntar:

“Você é casado? Tem Filhos?”

A resposta dele me surpreendeu muito.

“Sim sou casado e tenho nove filhos.”

“Nove filhos, Nossa!” Exclamei, claramente impressionado em saber que uma pessoa tão jovem tinha tantos herdeiros. Quis saber mais.

“Porque tantos?”

“Vontade de Deus” foi a resposta curta e enigmática do meu amigo.

Achei bom não indagar que vontade de Deus era esta, mas estava curioso.

“Como você consegue viver com nove filhos, deve ser difícil.” Perguntei sem perguntar.

“Sim, muito difícil. Crianças dão muito trabalho. É muito bom estar com meus filhos, mas descanso deles no escritório.” Respondeu meu amigo com sinceridade.

“E como você sabe quem é quem? Você se lembra de todos, não confunde os nomes?” perguntei e afirmei ao mesmo tempo.

“Eu sei claramente quem é o primeiro e o último, os outros do meio, passam despercebidos”

A resposta do Pepe fez muito sentido para mim e me fez ficar contente de haver sido eu o primeiro filho dos meus pais.

Mais tarde comentei o caso com a Fernanda.

“O Pepe me contou que tem nove filhos. Como é possível, uma pessoa tão jovem?”

“O Pepe faz parte da ordem dos Rosa-Cruzes” Esclareceu.

Eu não tinha ideia e até hoje não sei exatamente o que é esta organização que tem como símbolo uma cruz com uma rosa, normalmente vermelha, ao centro. Exotérica e mística, prega o conhecimento do universo e o desenvolvimento do ser humano. Suas raízes remontam ao Egito antigo e está de certa forma ligada à maçonaria. Ganhou força no século 17 quando vários manifestos foram publicados na Europa contendo referências claras ao misticismo cristão, cabala e alquimia. Em outras palavras, um prato cheio.

Por isso, depois da minha conversa com a Fernanda, decidi não tocar neste assunto com o Pepe. Hoje infelizmente não tenho mais contato com ele, e acho que foi um erro não o questionar na época. Tenho vontade de saber mais sobre a ordem dos Rosa-Cruzes. Tudo que é misterioso me atrai.

O Pepe e eu frequentemente almoçávamos juntos, muitas vezes em companhia de outros colegas da empresa. Em um destes almoços, ele indagou.

“Já assistiu a uma corrida de touros?”

“Corrida de touros?  Nunca assisti, nem sei como é” respondi.

“É um espetáculo, uma maravilha” respondeu, mas não continuou porque fomos interrompidos por uma pergunta de um outro membro do grupo. Uma questão de trabalho. O assunto morreu ali.

Algumas semanas depois, saindo de uma demorada reunião, comentei com o Pepe.

“A esta hora, vou tardar pelo menos umas duas horas para atravessar a cidade e chegar em casa.”

“Onde você mora?”  Ele me perguntou e quando respondi ele afirmou.

“Sim, vai demorar muito.”

“Porque não jantamos por aqui?” Sugeriu ele.

Achei boa a ideia e de pronto liguei para minha esposa dizendo a ela não me esperar para o jantar. Ela não gostou muito, mas entendeu.

Durante o jantar em um restaurante de Madrid cuja especialidade era cordeiro assado, entre garfadas e goles de vinho voltamos ao tema das touradas. O Pepe voltou a insistir.

“Que tal se formos assistir uma corrida?”

Sinceramente me surpreendeu o convite. Tinha em mente que o Pepe por ser aparentemente religioso, poderia achar interessante, mas não deveria gostar de assistir este tipo de espetáculo. Mas estava enganado. O Pepe sabia tudo sobre corrida de touros.

“Você vai gostar tenho certeza, porque eu posso explicar tudo a você. Sou um experto em corrida de touros.”

Eu jamais havia pensado em assistir uma corrida, um espetáculo que até então eu não entendia muito bem e achava ser primitivo, pagão, sangrento e cruel para com o touro. Achava também que o toureiro, longe de ser um herói era na verdade um covarde.

Não vou dizer que mudei totalmente de opinião, mas depois de assistir minha primeira corrida, principalmente pelas explicações do Pepe, passei a ver o espetáculo sob outros ângulos e comecei a apreciar a tradição, o perigo que representa para o toureiro e também a arte. Sim, a arte, porque saí da corrida de touros acreditando que é uma arte que foi se transformando e enriquecendo através dos tempos.

Desde a era paleolítica, cerca de 15.000 anos atras, se sabe que os touros eram e continuam sendo reverenciados como símbolos de força, virilidade e fertilidade. Mas também há registros com imagens de lutas entre touros e homens em várias civilizações pré-históricas e antigas da Europa, Oriente Médio e até da Índia. Quem não se lembra da luta entre Teseu e o Minotauro, que segundo a mitologia grega ocorreu no labirinto de Creta?

Os touros usados nas corridas são de uma espécie distinta, chamada na Espanha de Toro Bravo, e são criados e treinados especificamente para participar das corridas. Nessas corridas o touro não pode ser manso, tem que ser bravo mesmo. Essa espécie de touro, hoje se sabe, foi muito usada na Roma antiga nos jogos que os romanos faziam nas suas arenas. A tradição vem de longe.

Na Espanha os mouros tomaram a arte da tourada dos visigodos, a refinaram, aperfeiçoaram e a faziam montados a cavalo. As touradas modernas onde os toureiros lutam a pé, começou em 1726 com um toureiro chamado Francisco Romero, mas ainda mantém resquícios do tempo dos mouros. Dizem que o grito de Olé que os espanhóis fazem a cada passe da capa do toureiro nas touradas modernas vem daquela época e é uma forma transmutada de dizer Alá.

O Pepe foi se encontrar comigo no domingo à tarde perto do escritório porque ficava mais fácil para ele e para mim de lá irmos ver a corrida. Veio com mais dois amigos. Estava contente.

“Consegui quatro ingressos na sombra”

“Sombra?” Perguntei não entendendo.

O Pepe, ajudado pelos dois amigos, me explicaram. A praça de touros de Madrid é chamada de La Plaza de Toros de Las Ventas del Espíritu Santo ou simplesmente Las Ventas. Não é a maior nem a mais tradicional da Espanha. Estas honrarias são reservadas à praça de Sevilla chamada de La Plaza de Toros de la Real Maestranza de Caballería de Sevilla, mas a de Madrid é a mais conhecida.

Construída com tijolos vermelhos e cerâmica, a praça de Madrid não tem cobertura. Madrid tem um clima desértico onde o sol se põe muito tarde e raramente chove. Para efeito de ingresso, a praça está dividida em três zonas. Durante a corrida, uma zona fica totalmente ao sol torrando a pele dos espectadores, uma segunda começa ensolarada depois, durante a corrida entra na penumbra. Uma terceira, a mais cara, os espectadores ficam na sombra o tempo todo.

Era começo de junho bem no meio da festa de San Isidro, quando a praça de toros, como era costume, oferecia os melhores espetáculos com toureiros famosos.

“Espero que o rei também participe, nossos lugares ficam muito perto de onde o rei costuma assistir a corrida.” Me informou o Pepe.

O rei da Espanha, naquela época era considerado um herói nacional por haver conduzido muito bem a transição da Espanha de um regime fascista, para o regime democrático depois da morte do ditador Francisco Franco. Entretanto, fazem poucos anos o rei caiu em desgraça. Devido a escândalos de infidelidade e corrupção o rei Dom Juan Carlos teve que abdicar do trono em favor do seu filho, Dom Felipe e teve até que abandonar a Espanha.

Chegamos na praça de toros com tempo de sobra. A corrida começava exatamente as sete horas da tarde. Engraçado que na Espanha em geral a parte da tarde se estende até pelo menos as 21 horas. Então é comum se dizer oito ou nove horas da tarde. Eu que cresci achando que depois das seis horas começava a noite, ainda não me acostumei, e quando visito a Espanha, acho meio estranho dizer sete, oito ou nove horas da tarde.

No trajeto, aprendi que uma corrida de toros na verdade é feita de vários espetáculos. Seis ao todo. A corrida tradicional conta com seis touros, três toureiros e alguns assistentes. Os toureiros são chamados de matadores e cada um é responsável por matar dois touros. Há uma variação que é a tourada mano-a-mano, com somente dois matadores, cada um sendo responsável por três touros.

Cada espetáculo dura aproximadamente vinte minutos e é descrito como uma tragédia em três atos, ou tercios. Cada um dos tercios é anunciado com trompetes e por uma marcha, o paso doble, tocado pela banda da praça de touros. Na verdade, os tercios são subdivididos, e há seis fases distintas e obrigatórias para uma tourada: a abertura com trabalho de capa larga, normalmente de cor púrpura, feita pelos assistentes do toureiro, a lanceta dos picadores, os passes chamativos e graciosos com a capa grande, a colocação das bandarilhas, os passes perigosos com a muleta e, finalmente, a morte do touro.

Se o toureiro tiver um bom desempenho e o touro for morto de forma limpa, o público acenará com lenços brancos pedindo ao presidente da corrida para dar troféus ao toureiro, isto é, uma orelha ou duas orelhas e se o desempenho foi bom mesmo a cauda do touro.

Caso o toureiro seja ferido e tiver que deixar a arena para atendimento médico ou ir diretamente para o hospital, os matadores restantes ficam responsáveis por matar o touro. O espetáculo não para, continua.

A carcaça do touro morto é rapidamente retirada, puxada para fora da arena por cavalos atrelados e depois distribuída para venda em açougues ou mercado local. Os testículos do touro são servidos em alguns restaurantes da cidade. O prato é considerado afrodisíaco e muitos sustentam que aumenta a virilidade dos que o disfrutam.

Há casos em que o touro não é sacrificado. Presenciei um deles que me deixou com um amplo sorriso no rosto.

Foi na terceira corrida. O touro bravo entrou na arena como todos os outros touros entraram, correndo como um louco, tentando chifrar tudo e todos à sua frente. Os assistentes logo tomaram refúgio no callejón e o espetáculo parou de repente, não continuou.

O Pepe me explicou que os espectadores não queriam aquele touro, achavam que o touro estava com algum problema na perna esquerda da frente. Eu não vi nada errado com o touro, mas notei que os espectadores agitavam lenços verdes indicando ao presidente da corrida que ele deveria rejeitar o touro.

O Pepe esclareceu: o presidente da corrida é a autoridade máxima da praça de touros e é responsável por garantir que a legislação taurina seja cumprida e por garantir que a tourada seja executada sem deslizes. Para indicar suas decisões ele usa lenços de várias cores:

Branco: Usado na maioria das ocasiões. Marca o início da tourada, a soltura de cada touro, a passagem de um tercio para outro, as advertências ao matador e os troféus.

Verde: Comanda o retorno do touro aos currais, devido a um problema físico.

Vermelho: Ordena colocar bandarilhas pretas no touro como punição extra porque o touro não atacou o cavalo do picador e, portanto, não demonstrou bravura.

Azul: Concede ao touro morto retorno à arena para homenageá-lo pelo seu desempenho. O touro é então exibido com uma volta de honra em torno da arena ante aplausos dos espectadores.

Laranja: É o reconhecimento máximo a um touro, concedendo-lhe o perdão por sua bravura e permitindo que ele sobreviva. O matador, o criador e o público devem concordar. Por isso o uso deste lenço ocorre muito raramente.

O presidente concordou em rejeitar o touro e balançou o lenço verde. O que passou depois, quase não acreditei.

Como é possível retirar vivo da arena um touro bravo, rápido, que quer chifrar todo mundo?

Foi muito fácil, trouxeram as vacas!

Sim, as vacas. Umas dez ou doze delas, que pachorrentamente, ao som dos sinos que traziam amarrados ao pescoço, se acercaram do touro envolvendo-o e lentamente o levaram de volta ao curral!

Fiquei pensando nisto por muito tempo, e até hoje acho que há uma mensagem para nós os homens neste episódio.

Ainda professorando, o Pepe me disse:

“Se um touro deixa uma corrida vivo, nunca mais volta à arena. Ele aprende rápido e se voltar vai ser muito mais perigoso para o toureiro.”

Antes da hora da verdade, antes de empalidecer diante do touro, o toureiro jovem deu um tremendo show usando a capa larga.

Isto aconteceu depois do picador a cavalo com uma lança enorme aplicar vários golpes na corcunda do touro. Não gostei nada desta parte, me pareceu muito cruel. Enquanto isto acontecia, o cavalo envolto em uma espécie de armadura recebia investidas do touro quase derrubando o cavalo com cavaleiro e tudo.

O Pepe sempre ao meu ouvido contou que tempos passados os cavalos não usavam armadura e uma enorme quantidade deles morria durante a corrida. Sabendo disto, fiquei com uma sensação esquisita, de um lado entendendo e achando que colocar armadura nos cavalos era uma boa coisa, mas por outro lado sentindo que isto trazia uma desvantagem grande ao touro.

Este sentimento de dó do touro logo se desfez quando o jovem toureiro aplicou várias, elegantes, graciosas e corajosas verônicas, no touro com a capa larga, que arrancaram aplausos efusivos dos espectadores. Até este ponto eu não sabia que os passes com a capa larga tinham esse nome e muito menos ainda nome de mulher.

Li faz muito tempo que se acredita que a corrida de touros é uma espécie de bailado entre um casal, sendo que o toureiro faz o papel da mulher, talvez explicado pelas roupas justas e coloridas do toureiro.

Perguntei ao Pepe se isso era verdade, mas ele não confirmou.

“É, há uma lenda acerca disto, ninguém sabe ao certo se é verdadeira ou não.” Explicou.

Imediatamente após os lances da capa larga, o toureiro aplicou bandarilhas no touro. Foi aí que comecei a sentir a coragem do toureiro. A colocação das bandarilhas pode ser feita pelos assistentes, mas nesta corrida o próprio toureiro decidiu fazê-lo.

Por três vezes em seguida, segurando uma bandarilha em cada mão, o toureiro levantava os braços, ficava na ponta dos pés e partia célere em direção ao touro. O touro surpreso, demorava algumas frações de segundo para perceber o que estava acontecendo. Era o suficiente para o toureiro se desviar e com mira certeira, enfiar as bandarilhas na corcunda ferida do touro. Na última aplicação o touro por milímetros não conseguiu chifrar o toureiro bem na virilha. Os espectadores que haviam prendido a respiração naquele momento, voltaram a respirar aliviados e ato contínuo aplaudiram com vigor o toureiro.

Mais perigoso ainda, foram os passes que o toureiro deu com a muleta. Cada vez que touro baixava a cabeça para atacar, o toureiro praticamente dançando se curvava e desviava do touro. Por vezes o toureiro baixava a espada e a muleta e caminhava ao lado do touro, demonstrando indiferença e ignorando o perigo. Não sei porque, mas esta parte da corrida para mim foi a melhor depois das verônicas.

A morte do touro não me chocou.

Quando o touro baixou a cabeça para atacar o pálido toureiro, ele levantou o corpo e na ponta dos pés se curvou para cima do touro e enfiou quase que totalmente aquela espada enorme entre as espaldas do touro e imediatamente se desviou O touro não deu mais nem um passo. Caiu morto. Foi a morte mais limpa daquela tarde.

A multidão em uníssono deu um grito, aplaudiu e começou a balançar lenços brancos.

O presidente da corrida concedeu duas orelhas ao toureiro que se apressou em cortá-las do touro. Os aplausos continuaram e o toureiro recebeu uma chuva de rosas vermelhas quando mostrou e ofereceu o galardão aos espectadores e ao rei.

Com a morte do sexto touro, a corrida terminou. Ocasionalmente, quando o toureiro é excelente, ele é carregado para fora da arena pelos portões principais nos ombros de seus fãs aos gritos de “torero, torero”. Este é o elogio final e o melhor reconhecimento que um toureiro pode receber.

Eu achei que o jovem pálido toureiro deveria merecer este reconhecimento, mas não aconteceu.

Depois de muitos anos, quando penso naquela corrida de toros, voltam os sentimentos daquela tarde em Las Ventas. São sentimentos que se misturam.

Por um lado, me senti como se fosse um cidadão da Roma antiga, e estivesse no coliseu assistindo um dos sangrentos espetáculos daquela época. Em outros momentos, me senti dentro de uma festa enorme com marchas musicais e assistentes felizes balançando lenços. Mas também me pareceu estar participando de uma ópera de Bizet, onde ao invés do touro a cigana Carmen era a sacrificada.

A corrida de toros na Espanha tende a desaparecer. Em algumas comunidades, como na Catalunha por exemplo, já é proibida. Esta semana mesmo, fiquei sabendo de uma demonstração em Madrid contra as corridas. Eu entendo a razão e me identifico com aqueles que querem um fim para este tipo de espetáculo, mas há dias em que penso que se isto acontecer, o mundo vai perder mais uma cultura e arte milenar e vai ficar ainda mais igual e enfadonho.

Era tarde quando saímos das Las Ventas mas ainda cedo para o jantar. Nosso grupo foi tomar uma cerveja e saborear uma tablita de jámon com queijo manchego em um dos bares próximos esperando os restaurantes abrir.

O jantar havíamos combinado seria em um restaurante que servia testículos de touro. Quem sabe esta história de aumento da virilidade era mesmo verdadeira!

 

 

 

 

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