Cartazes

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Manolo Manolete, toureiro matador.
Manolo Manolete, toureiro de traje vermelho e dourado.
Manolo, você anda na noite, seu ambiente
Nas arenas, você treina, treina seu desejo de amor e de morte.

Manolo Manolete, torero matador.
Manolo Manolete, torero au costume rouge et or
Manolo, tu promènes dans la nuit, ton décor.
Aux arènes, tu entraînes, tu entraînes ton désir d’amour et de mort.

Manolo Manolete, trecho da música de Vanessa Paradis.

 

Envergonhado e ao mesmo tempo sentindo a adrenalina pulsar no meu corpo, com o rosto quente, vermelho, subi no carro e tomei da direção. Ao meu lado subiu meu chefe que havia vindo dos Estados Unidos rever o progresso da nossa organização e do nosso trabalho na Espanha.

Além do trabalho, tinha pouca intimidade com ele. Na verdade, essa visita foi a primeira oportunidade que tive de poder conversar com meu chefe assuntos que não fossem de trabalho.

Também não foi a única vez que passei vergonha durante a visita dele. Comecei a pensar que ele iria levar de volta aos Estados Unidos uma péssima impressão, quando assim sem mais nem menos, tão logo  saí do estacionamento, ele se virou para mim e disse:

“Muito obrigado pela aventura!”

Fiquei sem saber o que dizer, e balbuciei algo como:

“Foi interessante, não foi?”

“Sim, muito. Agora vou ter muito o que contar quando voltar para casa.”

Os preparativos para receber o visitante foram feitos com todo esmero, todos foram envolvidos. A agenda final não deixava nada ao acaso. Cada minuto que meu chefe iria passar na Espanha estava cuidadosamente programado e organizado.

Revendo os preparativos, um dos membros do meu time exclamou:

“Está perfeito, nada vai dar errado.”

Este comentário me deixou com uma certa confiança. Mas a confiança se desvaneceu logo no primeiro dia!

Fui busca-lo no aeroporto e comuniquei a ele que o plano era ir ao hotel, fazer uma refeição rápida e depois deixa-lo no hotel para descansar. O voo de Nova Iorque era um voo noturno que chegava em Madrid por volta do meio dia. Havíamos antecipado que ele chegaria cansado e iria querer começar a visita só no dia seguinte.

“Gostaria ao hotel almoçar, depois tomar banho rápido e me trocar. Seria bom se aproveitássemos a parte da tarde para ir ao escritório e começar a visita.”  Foi o que me disse o meu chefe assim que o encontrei no aeroporto.

‘Mas você não está cansado da viagem?’ Perguntei

“Não, pelo contrário, estou muito bem.”

Eu sabia que ele havia viajado de primeira classe, mas mesmo assim não é normal conseguir descansar e dormir no voo. Logo ele esclareceu.

“Sabe, eu durmo muito bem nos voos.”

“Verdade? Como você consegue?” Perguntei curioso.

“Eu tenho um sistema e algo acontece comigo quando voo.”

“Como assim?” Perguntei mais curioso ainda.

“Rejeito qualquer tipo de comida ou bebida. No avião só bebo água.” E continuou “Quando os motores do avião começam a fazer aquele zumbido, me dá um sono. Tenho que me controlar para não dormir antes do avião decolar. Quando o avião decola, praticamente desmaio dormindo e só acordo quando o avião aterrissa. Por isso estou bem e descansado.”

Achei a explicação interessante, mas sentia um buraco no estômago de preocupação, não estava preparado para a mudança de planos e quase não comi nada no almoço.

Enquanto o meu chefe se preparava, liguei para o escritório, pedi uma reunião de emergência com meu grupo e mudamos praticamente todo o itinerário da visita.

Ao final, o primeiro dia correu bem. Fizemos as apresentações para o pessoal do escritório, tivemos algumas reuniões com executivos da empresa, depois ele e eu fomos comer umas tapas, a comida rápida e gostosa da Espanha. Dali o hotel.

No dia seguinte visitamos a fábrica e escritórios de alguns fornecedores, também tudo transcorreu bem.

No terceiro dia, viajamos para o sul da Espanha para encontrar com sócios espanhóis da nossa empresa. Eles eram donos de uma companhia de Sevilha que havia se associado à nossa empresa. Eu os conhecia por telefone. Por coincidência as duas visitas que eu havia feito a Sevilha eles estavam viajando e por isso não os conhecia pessoalmente.

Não tinha ideia que eles não entendiam o Inglês. Outra incorreta suposição minha. Nossas conversas por telefone tinham sido até então uma mistura de Portunhol, ou seja Português do meu lado com sotaque espanhol e do lado deles espanhol com algumas palavras em português.

O meu chefe, americano, como era de se esperar não falava uma palavra sequer em espanhol.

A plateia primeiro atônita, depois de alguns segundos começou a rir. Meu chefe e os sócios da nossa empresa me olhavam sem saber o que dizer.

Demorou alguns segundos para que pudesse compreender o que estava se passando.

A reunião com os sócios da nossa empresa, foi uma reunião aberta. Imagine a cena. De um lado meu chefe, eu no meio servindo de interprete e os sócios da nossa empresa do outro lado. Na nossa frente, os empregados da empresa, a plateia assistindo a conversa.

Meu chefe perguntava, eu tentava traduzir para o espanhol, os sócios respondiam, eu traduzia para o Inglês, meu chefe retrucava eu tentava traduzir para o espanhol, os sócios perguntavam eu traduzia para o Inglês, e assim foi indo. Depois de alguns minutos de reunião minha cabeça girando deu pane. Meu chefe perguntava eu traduzia para o Inglês, os sócios perguntavam eu traduzia para o espanhol.

Este foi o motivo do riso.

O rubor da vergonha subiu à minha face, mas mantive a calma.

“Opa, fiz a tradução errada!” comentei nos dois idiomas.

Todos riram novamente e a reunião seguiu. Só que desta vez eu parava para pensar antes de começar a traduzir.

No voo de volta a Madrid, meu chefe me fez um pedido inusitado.

“Sabe aqueles cartazes que anunciam as corridas de touro?” Ele me perguntou.

“Sim, acho que sei.”

“Você sabe se eles podem fazer cartazes, incluindo nomes de pessoas que não são toureiros?”

Eu não sabia ao certo, mas parecia me lembrar que sim, isso era possível.

“Acho que sim, que alguém deve fazer isto para turistas.” Respondi.

“Bem, eu queria comprar alguns cartazes e incluir o nome de amigos meus para dar de presente.” Ele me informou, pedindo sem pedir, para eu ajudar.

“Amanhã vou procurar saber.” Disse a ele.

No dia seguinte comentando com minha secretária ela disse que não sabia onde eu poderia conseguir estes cartazes, mas perguntando a outras pessoas do escritório concluiu que o melhor lugar para tentar encontrar seria a praça de toros de Madrid, Las Ventas.

Até então eu não havia assistido a nenhuma corrida de toros mas sabia exatamente onde ficava a praça de toros, porque era a caminho do centro da cidade.

O que eu não sabia era que a corrida de toros começava exatamente, sem exceção às sete horas da tarde, condição levada até as últimas consequências.

Dias mais tarde comentando a aventura que tive com meu chefe, me contaram a história da visita da Evita Peron a Espanha, quando junto ao El Caudillo, Francisco Franco assistiu a uma corrida de toros.

A visita de Eva Peron à Espanha no verão espanhol de 1947 foi um acontecimento histórico para a Espanha. Foi depois da guerra civil e logo depois da segunda guerra mundial e o povo espanhol agradecido da ajuda prestada pela Argentina à Europa e particularmente à Espanha durante o período de escassez da guerra, tratou Evita como se fosse uma rainha.

A popular esposa de Juan Domingo Peron, passou dezoito dias na península Ibérica, foi condecorada com a Gran Cruz de Isabel La Católica, incrustada de diamantes e assistiu a corrida na praça de toros de Madrid no el Paleo Real de Las Ventas, área destinada à família real.

A corrida de toros começa sempre as sete horas da tarde, sem exceção!

Todos sabiam que a loira Evita nunca chegava no horário para as funções, mas a corrida de toros, sem exceção, começa as sete horas da tarde, marcada pelo enorme relógio que havia nos portões centrais da arena!

Como resolver este impasse?

A praça de toros contratou um indivíduo para subir ao relógio e cada vez que o ponteiro dos minutos saltava para frente marcando um minuto a mais das sete, o indivíduo com as mãos voltava o ponteiro para trás.

A corrida começou meia hora mais tarde, mas o relógio da entrada da arena marcava sete horas da tarde, em ponto. Não havia exceção para ninguém.

Combinei com meu chefe de leva-lo ao hotel no final do expediente e a caminho, passar pela praça de Las Ventas, para ver se havia alguém vendendo cartazes personalizados das touradas.

Foi então que se deu a aventura!

O trafego atras do meu carro era intenso, parecia que todos se dirigiam na mesma direção que a minha. Fato que comprovei quando entrei no estacionamento da praça de toros. Faltavam alguns minutos para as sete da tarde. Eu não havia me dado conta e não sabia que as corridas começam sem exceção naquele horário.

No estacionamento, os carros à minha frente de repente pararam. Notei que haviam carros parados à minha direita, à minha esquerda e que havia pelo menos uns quatro carros na minha frente bloqueando minha saída. Para minha surpresa os passageiros dos carros parados, simplesmente saíram dos carros, e foram correndo entrar na arena, deixando os carros a meu ver, abandonados no estacionamento.

Estávamos presos sem poder sair!

Eu não podia acreditar, e o meu chefe muito menos.

Tentei conter a vergonha e manter a calma. Não sabia o que fazer. Com todo tipo de pensamento voando pela minha cabeça, avaliando a situação, disse ao meu chefe.

“Não há problema, está tudo sob controle.” E continuei tentando demonstrar uma calma que não sentia. “Vamos ver se conseguimos os cartazes, depois vamos ao hotel de taxi, jantamos e mais tarde eu volto para recolher o carro. Não há problema nenhum.”

Meu chefe, sorrindo concordou. Não sei se ele estava achando engraçado o acontecimento ou minha vã tentativa de permanecer calmo.

Saímos do carro e nos dirigimos a entrada da praça, mas antes voltamos a olhar meu carro completamente encurralado. Meu chefe balançou a cabeça não acreditando.

Para minha surpresa, na praça de toros havia sim um ambulante que vendia cartazes personalizados. Meu chefe comprou vários.

Os nomes que meu chefe pediu para incluir nos cartazes, é claro, deixava o cartaz totalmente ridículo não combinando em nada com os nomes dos supostos toureiros e assistentes que fariam a corrida com os amigos do meu chefe.

Me lembro bem os dizeres de um deles:

Interessado em um dos cartazes, perguntei ao vendedor se ele poderia fazer um cartaz com meu nome e com o nome do Manolete.

Manolete, o El Cordobés como o apelido indica nasceu em Cordoba, em 1917 e é um dos mais famosos toureiros espanhóis, senão o mais famoso, praticamente um herói nacional.

De semblante soturno e sóbrio, muito habilidoso, seus passes eram elegantes e econômicos e ao mesmo tempo audazes. A crueza de sua técnica era compensada por seus reflexos acrobáticos e por sua coragem. Parecia ser totalmente indiferente à sua própria segurança. Um dos seus movimentos mais audazes que fazia, era o de beijar o touro entre os chifres. Por isso atraia multidões extraordinárias para suas corridas.

Foi ferido mais de dez vezes e quando anunciou que iria se aposentar em 1947, foi convencido a participar de uma temporada final na praça de touros de Linares, lutando contra os maiores e mais bravos touros.

No momento de matar seu segundo touro, quando estava pronto a enfiar a espada na espalda do touro, foi corneado. O chifre do touro rasgou sua perna direita. Manolete o mais famoso e mais bem pago toureiro de todos os tempos, morreu no hospital, aparentemente de um erro médico durante o tratamento.

A Espanha e os aficionados da tourada até hoje choram a morte do Manolete, e repetem uma frase que ficou famosa:

“Ele morreu matando e matou morrendo!”

Creio que por respeito, o vendedor me deu a entender que não se atreveria a vender um cartaz de turista com o nome do Manolete. Naquele momento decidi aprender tudo que podia sobre o famoso toureiro.

Terminada a compra antes de procurar por um taxi, disse ao meu chefe.

“Vamos até o meu carro, quero ter certeza que está trancado.”

Daquele ponto em diante, não queria correr mais riscos.

Meu chefe concordou, chegamos até o carro e mais uma vez comprovamos que não havia jeito do carro sair dali. Fiquei preocupado pensando o que poderia acontecer quando voltasse depois de terminada a corrida. Encontraria meu carro inteiro?

Distraído nos meus pensamentos não notei de imediato os dois homens empurrando um macaco enorme, daqueles de oficina mecânica.

“Querem sair com o carro?” Me perguntaram.

“Sim,” disse eu não entendendo muito bem o que estava acontecendo.

“Qual é o seu carro?”

Quando apontei para o carro, o dois começaram a trabalhar e com o macaco, levantaram o primeiro carro que estava perto da saída e na frente do meu e o tiraram de lá, fizeram o mesmo com o segundo, terceiro e quarto.

Quando vi que podíamos sair, fui até os dois e sem perguntar o que queriam cobrar, dei a eles o equivalente a cem dólares. Abriram um sorriso enorme e agradeceram.

Rapidamente subimos no carro e saímos. Meu chefe comentou:

“Você deixou aqueles dois muito contentes.”

E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, continuou.

“Muito obrigado pela aventura.”

Não sei quantas vezes meu chefe contou esta história para seus amigos nos Estados Unidos, ainda bem que em nenhuma destas vezes eu estava presente!

 

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